quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010




De fato algumas pessoas possuem um verdadeiro reflexo de submissão, um medo irracional da liberdade, um masoquismo visível em toda parte da vida cotidiana. Com que amarga facilidade se abandona um desejo, uma paixão, a parte essencial de si. Com que passividade, com que inércia se aceita viver por uma coisa qualquer, agir por qualquer coisa, com a palavra "coisa" arrastando por toda parte seu peso morto. Uma vez que é difícil ser si mesmo, adbica-se o mais rápido possível, ao primeiro pretexto: o amor pelos filhos, pela leitura, pela alcachofra. Nosso desejo de cura apaga-se sob tal generalidade abstrata da doença.

Raoul Vaneigem

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Violência passional, violência justificável




Eu estava conversando com um amigo sobre o tema da violência revolucionária; ele estava defendendo o direito de ferir ou matar em auto-defesa, concedido a todo funcionário governamental ou corporativo envolvido num ato de assassinato, e eu estava tentando explicar porque essa noção me desagradava. Meu amigo tinha uma vantagem - afinal, se é aceitável usar violência como reação a um soldado ou mercenário corporativo invadindo sua casa para despejar, prender ou matar você, por que não usar violência contra o general ou diretor empresarial que os mandou?
Eu acredito que a auto-defesa é um direito inato de todos os seres vivos, e também acredito que a conceitualização ou adoção de um pacifismo total só é possível numa sociedade colonizada e estatizada, que já foi ensinada a aceitar a idéia de uma cidadania passiva e a legitimação da violência autoritária. Por outro lado, acho que a violência é errada, que machucar alguém, mesmo o maior filho da puta corporativo, é em algum nível causa para tristeza, mesmo que eles estejam recebendo o que merecem. Para os anarquistas, a violência é, ou deveria ser, problemática num nível tático também. Toda violência tem um elemento autoritário. Isso é quase invisível nas ações de quem está em desvantagem, até o ponto em que os papéis se revertem, e o perdedor se torna vitorioso. Se a violência foi usada para alcançar a vitória, será ela necessária para preservar a vitória?
Parte da razão pela qual não pude articular meu desconforto e refutar o que meu amigo dizia é que eu quase concordava com ele. Afinal, no dia anterior eu ri alto quando li sobre os dois guardas de detenção de Woomera que foram espancados por anarquistas mascarados libertando alguns dos prisioneiros que buscavam asilo no país. Sob um certo aspecto é triste pensar nisso: um pobre e tolo robô que "só fazia seu trabalho", com a mandíbula quebrada, joelho esmagado, nariz ensangüentado, imaginando que diabos havia acontecido - não estaria ele protegendo seu país; fazendo o que lhe foi ensinado que era o certo a fazer? Mas em outro nível, mais óbvio, é incrívelmente satisfatório pensar que não só algumas pessoas que estavam presas agora estão livres, mas também que alguns "porcos" provaram o gosto da violência que exercem todos os dias.
O caso dos guardas de detenção parece bem claro. Eles estavam usando violência para aprisionar pessoas, então alguns anarquistas usaram violência - não gratuitamente, só o que foi necessário - para libertar algumas dessas pessoas. Podemos chamar isso de um ato de violência justificável, e mesmo agora já não estamos lidando com auto-defesa direta, mas com violência usada para a defesa do outro. Seria também justificável usar a violência para deter os que fazem política, eleitos e nomeados para o cargo, que mandaram os que pediam asilo para a prisão? E quanto aos diretores das corporações que construíram a prisão, ou fabricaram as armas e outras ferramentas usadas pelos guardas? Certamente parece justificável - não seria justo deixar os brutamontes na linha de frente levarem todo o fogo. Se os políticos e diretores empresariais estão levando a guerra para nossos lares, e aos lares de pessoas no hemisfério Sul, não seria justificado levar a guerra aos seus lares? O problema é que isso seria justificável. Em um sistema global de injustiça e violência onipresentes, você pode continuar mudando os limites do que é justificável até que você chega num ponto quase Leninista de extermínio programado de todos os "contra-revolucionários".
Quando percebi e aceitei isso, eu finalmente tinha uma resposta para meu amigo. A questão não é onde traçamos o limite que define a violência "justificável", mas que estejamos traçando um limite pra começar. Todo o sistema global está nos atacando, matando pessoas, destruindo o planeta, e a idéia de auto-defesa, quando usada em um nível racional, pode ser usada para justificar violência contra quase todos que trabalham dentro do sistema. A principal questão é que a violência chega em seu ponto mais cruel quando é um ato racional - estatismo, a ciência ocidental, pena de morte, e regimes ditatoriais nos demonstraram esse princípio. Quando estabelecemos as conexões de alguém a vários mecanismos corporativos ou governamentais de assassinato e ecocídio, ao tentar decidir se são um alvo justificável para atos de auto-defesa, nós tiramos deles toda sua humanidade, toda sua essência como seres vivos e os transformamos em funcionários do poder. A maior violência acontece em nossas mentes, num nível metafísico, quando tornamos em trivial a dor que podemos causar justificando-a e ignorando-a de antemão.
Se alguém me ataca, pronto para me matar ou aprisionar, eu não preciso relacioná-los com um sistema maior de violência, e não preciso chegar a uma conclusão racional de se me defender usando a força seria justificável. Se a situação fica preta, todas as cartas são postas na mesa e as pretensões democráticas de nosso governo civil são deixadas de lado num momento revolucionário, então todos sabem qual é seu posicionamento, eu não preciso construir uma justificativa para mim mesmo de que a elite e seus capangas vão usar violência contra mim se eu permitir. Auto-defesa é um pressentimento instintivo e usá-lo racionalmente para decidir quando a violência é ou não justificável é sedar nossos instintos e colocar a vida, a morte e a dor numa esfera onde eles não podem ser devidamente valorizados.
Corporações e governos estão matando pessoas todos os dias. Existe um clima de guerra desenfreada pelo planeta. Nós devemos lutar e resistir. Eu reconheço a possível necessidade de usar a violência, machucar alguém, para libertar a mim mesmo e a outros. Mas deve ser um ato de paixão. Não devo reprimir a possibilidade de sentir culpa com um ato calculado e bem executado. Se na pior das hipóteses, você deva matar alguém, você deve ao menos respeitá-los e permitir-se chorar pelo que fez. E se você não sente nenhuma compaixão, pelo que exatamente você está lutando?


- um amigo da Anarquia Verde

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Sociedade

Sociedade. Do latim socius, Companhia. 1. Uma congregação organizada de indivíduos e grupos relacionados. 2. Aparato totalizador, avançando as custas do indivíduo, da natureza e da solidariedade humana.

A sociedade em todos os lugares esta sendo impulsionada pela rotina do trabalho e consumo. Este movimento cego e induzido, tão distante de um estado companheirismo, não toma lugar sem agonia e desafeto. O "ter mais" nunca compensa o "ser menos", como prova o aumento do vício em drogas, trabalho, exercício, sexo, etc. Virtualmente qualquer coisa pode ser e é usada excessivamente em busca de satisfação numa sociedade em que sua característica é a negação da satisfação. Mas tal excesso ao menos fornece a evidencia do desejo por realização, o que é, uma imensa insatisfação com o que esta diante de nós.

Os charlatões fornecem todo tipo de escapismo, por exemplo. A panacéia New Age, um repugnante misticismo materialista em escala massiva: fraco e pensativo, aparentemente incapaz de investigar qualquer parte da realidade com coragem ou honestidade. Para os praticantes da New Age, psicologia não é nada mais do que uma ideologia e sociedade é irrelevante.

Entretanto, Bush (provavelmente Bush pai, N.do T.), avalia: "gerações nascendo entorpecidas no desespero", foi previsivelmente o suficiente asqueroso para culpar as vítimas citando seus "vazios de moral". A profundidade da estado de miséria deve ser melhor refletido pela informação federal divulgada em 19/09/91, sobre estudantes do ensino superior, que foi descoberto que ao menos 27% dos estudantes "pensaram seriamente" sobre suicídio no ano anterior.

Poderia ser que o social, com sua crescente evidência da alienação - depressão em massa, a recusa da alfabetização, o aumento das desordens psíquicas, etc. - deveria ser finalmente ser registrado politicamente. Tal fenômeno como o contínuo declínio da participação eleitoral (nos EUA o voto é facultativo) e a profunda descrença no governo levou a Kettering Foundation, em junho de 1991, a concluir que "a legitimidade de nossas instituições políticas é mais problemática do que nossos lideres imaginam", e em outubro do mesmo ano, um estudo de três estados (como noticiou o colunista Tom Wicker em 14/10/91) levou a perceber "um perigoso abismo entre os governantes e os governados".

O desejo por uma vida e por um mundo não-mutilado no qual viver colide com um fato deprimente: é fundamental para o progresso da sociedade moderna a necessidade capitalista insaciável por crescimento e expansão. O colapso do capitalismo de estado na Europa Oriental e na União Soviética, deixou apenas a variedade "triunfante" do mesmo, no comando, mas agora confrontado insistentemente com contradições muito mais sérias do que as que supostamente venceu em sua pseudo-luta contra o "socialismo". Obviamente, o industrialismo soviético não foi qualitativamente diferente do que qualquer variante do capitalismo, e ainda mais importante, nenhum sistema de produção (divisão de trabalho, dominação da natureza, e escravismo trabalhe e pague em maiores ou menores doses) pode permitir a felicidade humana ou a sobrevivência ecológica.

Podemos ver agora uma vista aproximada de todo o mundo como um moribundo tóxico e sem ozônio. Quando uma vez a maioria das pessoas procuravam a tecnologia como uma promessa, agora sabemos com certeza que isto nos matará. Computadorização, com seu tédio congelado e veneno dissimulado, expressa a trajetória da sociedade, estruturada elegantemente aparte da existência sensual e encontrando sua apoteose atual na Realidade Virtual.

O escapismo da Realidade Virtual não é o maior problema, quem de nós poderia prosseguir sem escapes? Do mesmo modo, isto não é tanto uma diversão da consciência como é uma consciência de completo distanciamento do mundo natural. A Realidade virtual testemunha uma profunda patologia,
recordando as telas barrocas de Rubens que mostram cavalheiros com armaduras rodeados, porém separados, de mulheres nuas. Aqui os tecnojunkies "alternativos" da Whole Earth Review, promotores pioneiros da Realidade Virtual, mostram suas verdadeiras cores. Um fetiche de "ferramentas", e uma total carência de interesse em criticar as direções da sociedade, direcionados a glorificação do paraíso artificial da Realidade Virtual.

O vazio consumista da simulação e manipulação de alta tecnologia deve seu domínio a duas tendências crescentes na sociedade, especialização do trabalho e o isolamento de indivíduos. Deste contexto emerge o mais terrível aspecto do mal: isto tende a ser comprometido por pessoas que não são particularmente más. A sociedade, que de nenhuma maneira poderia sobreviver a uma inspeção de consciência é preparada para prevenir tal inspeção.

As idéias dominantes e opressivas não permeiam totalmente a sociedade, ao invés, seu sucesso é garantido pela natureza fragmentada da oposição e elas. Entretanto, o que a sociedade teme mais é precisamente as mentiras que suspeitam sobre as quais ela esteja construída. Este medo ou recusa é obviamente não o mesmo como começa a expor uma força mortal de circunstâncias para as forças dos eventos.

Adorno notou na década de 1960 que a sociedade está crescendo mais e mais enganosa e incapacitada. Ele previu que as discussões eventuais das causas da sociedade poderia se tornar insignificantes: a própria sociedade é a causa. A luta por uma sociedade - se ainda pode ser chamada de sociedade - face-a-face, em e do mundo natural, deve ser baseada num entendimento da sociedade hoje como uma marcha fúnebre monolítica e expansiva.

TexTo dE: Jonh Zerzan